“Não circulo pelos meus restaurantes. Acho um tédio o cliente estar comendo e o chef vir à mesa bajular”, diz Paola Carosella
Se você for ao restaurante Arturito ou em uma das duas unidades do La Guapa, em São Paulo, com a intenção de tirar uma selfie com a chef Paola Carosella, é provável que saia de lá sem a foto no Instagram. É o que tem acontecido com os clientes dos estabelecimentosda argentina de 43 anos,desde que ela ganhou fama como jurada do Masterchef Brasil – reality show gastronômico e líder de audiência na Band, há dois anos.”Minha garçonete, a Lindalva, posa para as selfies por mim. As pessoas a veem e pedem: ‘A Paola não veio, então tira foto comigo?'”, divertese a cozinheira, já envolvida nas gravações da terceira temporada do programa, que estreia dia 15.
Paola também garante que não costuma saracotear pelos salões de seus restaurantes para paparicar a freguesia, um tipo de marketing comum entre os chefs badalados. Assim é desde que deixou Buenos Aires para comandar a cozinha do Figueira Rubaiyat, na capital paulista, onde trabalhou entre 2001 e 2013, antes de abrir seu próprio negócio. “A comida tem que falar
por si. Não é bajulação que vai completar o que falta no prato”, defende.
A franqueza afiada como um cutelo de corte preciso das carnes – especialidade que a destacou no concorrido circuito gastronômico paulistano – é sua principal característica. Com emoções à flor da pele, Paola falou nesta entrevista sobre as perdas trágicas dos pais, um episódio traumático de assédio sexual e o desafio de criar, sozinha, a filha Francesca, de quatro anos.
Marie Claire – Por que as cozinhas dos restaurantes são dominadas por homens?
Paola Carosella – Porque são fisicamente desafiadoras. Um cozinheiro passa até 12 horas em pé e fica com as pernas horríveis. Tenho problemas de circulação ainda hoje. Já carreguei caixas de tomates de 15, 20 quilos porque não podia contar com a gentileza de um colega, que não estava nem aí para o fato de eu ser mulher. Muitas vezes, não dá tempo de fazer xixi nem de trocar um absorvente. Você se queima, se corta, as mãos ficam inchadas e fedendo a tempero. Quando uma menina me conta que sonha ser chef, pergunto: “Você quer fazer cupcake ou ser cozinheira pra valer?”. Porque são coisas completamente diferentes.
MC – Você ficou mais masculinizada por fazer parte desse ambiente tão duro, por tantos anos?
PC – Olha, estou me vestindo de um jeito mais feminino, soltando o cabelo e usando maquiagem agora, para aparecer na TV. Desde que comecei minha carreira, há 26 anos, me acostumei a me compor como uma mulher que quer ser respeitada na cozinha. Nada de minissaia ou batom. Não é que antes me vestisse como um homem… Mas passava a maior parte do tempo de uniforme, calça larga e avental.
MC – Essa postura impediu que você sofresse assédio?
PC – Já havia sofrido assédio antes de ser cozinheira. Tinha uns 12 anos, estava sentada na fileira do canto no fundo do ônibus e um cara começou a se masturbar ao meu lado. Não sei onde arranjei forçaspara sair dali, me sentindo horrível, enojada… Não lembro nem se contei para minha mãe [a advogada Irma Polverari, que morreu em 1999, aos 47], porque senti tanta vergonha daquilo… Acho que foi uma dor de se saber mulher.
MC – Como assim?
PC – Nós, mulheres, convivemos com a dor, com a vergonha e com a culpa. Carregamos os filhos com dor, encaramos um dia de trabalho mesmo com cólicas menstruais, sofremos assédio… Ser mulher é foda!
MC – A cozinha devia ser um ambiente ainda mais hostil para as mulheres quando você começou a trabalhar…
PC – Muito mais! Quando disse a minha mãe que seria cozinheira, era como se contasse que havia escolhido ser empregada doméstica. Na Argentina dos anos 90, ainda não existia a figura glamourosa do chef, nem restaurantes bons, frequentados pelos mais ricos. Minhas amigas queriam se formar em engenharia, arquitetura. Eu fui trabalhar na cozinha.
MC – Então sua mãe não deve ter ficado nada satisfeita com sua decisão.
PC – Ela me apoiou. Talvez por ver que eu era feita para aquilo. Desde bem pequena, mostrava vocação. Gostava do ambiente da cozinha da casa dos meus avós.
MC – Como foi sua infância?
PC – Vivia em Morón [cidade a 17 km de Buenos Aires], em um bairro da periferia. Era um lugar feio e pobre, mas nossa casa era espaçosa, ficava perto de onde meus avós paternos moravam. Foi assim até os meus 3 anos, quando meus pais se separaram. Meu pai [Roberto Carosella, morto em 2000, aos 56] era maníaco-depressivo e foi difícil para minha mãe manter o casamento. Como ainda não existia divórcio legal na Argentina, meu avô deu uma grana para ela comprar um apartamento em Buenos Aires para viver comigo. Só revi meu pai três anos depois, quando já estava internado em um hospital psiquiátrico.
MC – Houve uma ruptura familiar?
PC – Com a família do meu pai foi total. Para o meu avô, um imigrante italiano bruto e pró-Mussolini, ter um filho com problemas mentais era uma vergonha. Minha mãe se magoava por não receber apoio dos sogros, que tinham condições financeiras para ajudar. Ela tentava cuidar do marido, dar tratamento adequado, mas, ao mesmo tempo, tinha que cuidar de mim.
MC – Que lembranças tem do seu pai nessa fase?
PC – Quase nenhuma. Sei que ele era um fofo, mas, quando surtava, sumia, passava três dias dirigindo sem dormir… Quando o reencontrei, devia ter uns 5 anos. Meus avós me levavam para visitá-lo. Os remédios para doenças mentais naquele tempo eram fortíssimos e, quando o via, sempre estava muito medicado.
MC – Como ele morreu?
PC – Ele se enforcou.
MC – Como recebeu essa notícia?
PC – Eu tinha 28 anos e já morava em São Paulo. [A reportagem tentou obter mais detalhes sobre as circunstâncias em que Paola foi informada da morte do pai, mas a chef preferiu não falar.]
MC – Houve tempo de desenvolver uma relação próxima com ele?
PC – Pouco. Quando perdi minha mãe, em 1999, me aproximei dele e tentei ajudá-lo. Meus avós o haviam deserdado e, toda vez que ele surtava, o internavam em manicômios públicos, uns lugares terríveis… Procurei advogados, pois queria fazer com que meu pai tivesse direito à herança. Assim, poderia comprar um apartamento para ele, onde tivesse acompanhamento terapêutico. Nossa relação era carinhosa, mas parecíamos mãe e filho, já que era eu quem cuidava dele. Alguns meses depois, já em 2000, tive que deixá-lo.
MC – O que aconteceu?
PC – Fui convidada para trabalhar em São Paulo [o chef argentino Francis Mallmann, que era patrão de Paola em Buenos Aires, abriria o restaurante Figueira Rubaiyat no Brasil e a chamou para comandar a cozinha. Antes, ela havia passado por restaurantes de Paris e Nova York]. Minha vida virou de cabeça para baixo! Sem falar português, chefiava uma cozinha que atendia 1.500 clientes diaria mente. Mas avisei meu pai: “Vou deixar nosso plano em stand-by e volto pra gente retomar”. Mas ele não segurou a onda e se suicidou.
MC – Você havia perdido sua mãe antes disso. O que aconteceu?
PC – Ela morreu afogada, na piscina da nossa casa em Buenos Aires.
MC – Foi suicídio também?
PC – Nunca se soube. Eu estava trabalhando, não tinha ninguém em casa. Acho difícil que ela tenha se matado, apesar de saber que não era feliz. Provavelmente foi um desmaio na piscina, talvez pelo efeito de um antidepressivo, por não ter comido direito, uma hipoglicemia… Acho que ela se deixou ir.
MC – Como você reagiu à tragédia?
PC – Foi terrível! Mas também não era fácil antes da morte dela…
MC – Por quê?
PC – Nossa relação, apesar de amorosa, sempre foi de confronto. Minha mãe era genial e divertida. Mas, quando ficava down, era muito down! Ela sofria de uma bipolaridade não diagnosticada, era workaholic e depressiva. Trabalhava duro, mas, quando chegava o sábado, trancava-se no quarto e só saía na segunda, para voltar ao escritório. Era pesado conviver com ela…
MC – Como lida hoje com essas perdas tão dolorosas?
PC – A gente nunca sabe quando vai se recuperar das nossas feridas. Posso até dizer que ficou tudo bem, mas sei lá se já extravasei toda a minha dor… Às vezes a deixo escapar em um berro, quando me abalo demais vendo minha filha [Francesca, 4] se comportando mal, ao me questionar tanto e nunca relaxar… Sempre penso que poderia ter minha mãe aqui comigo, linda e inteligente, ainda jovem com seus 63 anos… [Paola se emociona e chora.]
MC – Tem medo de desenvolver problemas psiquiátricos, como seus pais?
PC – Faço terapia há 23 anos e com o mesmo analista, toda semana, há 17. Não tenho nenhum sintoma diagnosticado. Sou otimista, empolgada com a vida e olho os problemas já pensando em como sairei deles. Às vezes fico brava e sou dramática. Ser mãe, por exemplo, toca em certos nervos que você nem sabe que existem…
MC – Que tipo de mãe você é?
PC – Sou mãe e pai ao mesmo tempo. Quando engravidei, o pai da Francesca [um arquiteto argentino com quem Paola se relacionou por três anos e cujo nome prefere não revelar] não foi presente. Ele é uma boa pessoa, mas se amedrontou com a paternidade. Hoje temos pouco contato. Então, com a minha filha, tento ser doce, mas discipliná-la e dar limites para que saiba lidar com as frustrações da vida.
MC – Tarefa complicada essa…
PC – Demais! Outro dia, estávamos na piscina de um hotel e a Francesca queria tomar sorvete de chocolate. O garçom disse que não tinha e ela deu um chilique. Pegueia pelo braço e a repreendi. Mandei que escolhesse outro sabor ou iríamos embora. Instantes depois, um garoto ali perto fez birra pelo mesmo motivo. Só que os pais mandaram o garçom buscar o sorvete na outra cozinha, do outro lado do hotel. Acho complicada essa felicidade pronta que as pessoas dão aos filhos. Na vida não é assim, as decepções chegam. E aí?
MC – Tem vontade de se casar?
PC – Sim. Mas não na igreja.
MC – Não é católica?
PC – Minha religião é Freud [risos].
MC – Será difícil para você, acostumada a tomar decisões sozinha, dividir a vida com um parceiro?
PC – Namoro a distância há dois anos [com o fotógrafo irlandês Jason Lowe, 50, que mora em Londres]. Nesse vai e volta, pela primeira vez, passamos dois meses juntos e foi ótimo. O Jason veio acompanhar a reforma da casa em que planejamos morar aqui em São Paulo. Somos independentes e nos admiramos por isso. Ele é incrível com a minha filha e me faz entender o sentido de ter uma família.
MC – Você se tornou uma chef famosa no programa Masterchef Brasil e até uma revista te incluiu na lista das mulheres mais sexy do país. Seu namorado fica com ciúme quando você circula pelos salões de seus restaurantes?
PC – Não, porque não costumo fazer isso. Acho um tédio essa coisa de o cliente estar comendo e o chef vir à mesa para bajular. Quando cheguei ao Brasil, eram considerados os melhores estabelecimentos os que tinham o melhor serviço e não a melhor comida. Vendiam fumaça, mas o atendimento era impecável. Lembro de uma vez em que entrei no Gero e me disseram: “Como está a rainha hoje?”. Era a primeira vez que eu ia lá! Toda essa bajulação preenchia espaços que o prato não conseguia.
MC – Quais são seus restaurantes preferidos?
PC – Gosto do Rochelle Canteen, em Londres. Aqui, adoro o Roberta Sudbrack, no Rio. Ela é uma chef respeitada por seus cozinheiros, tem talento e trabalha da porta da cozinha para dentro. Alguns chefs trabalham mais com a assessoria de imprensa que no fogão.
MC – Curioso que seus lugares favoritos não tenham estrelas no Guia Michelin…
PC – Não estou nem aí para o Michelin.
MC – Não gostaria de ver um de seus restaurantes listado lá?
PC – Se quiser, consigo. Mas terei que trocar a louça, colocar toalha de linho, enfeitar os pratos com espumas, incluir tucupi no cardápio… Eu não trabalho para isso.
MC – Você gostaria de voltar para a Argentina e conquistar lá o sucesso que faz aqui no Brasil?
PC – Não tenho essa pretensão. Talvez porque lá ainda tenha feridas abertas. Quando cheguei ao Brasil era como um tecido em branco, no qual consegui bordar traços próprios, sem histórias escuras e tristes.
Entrevista tirada da Revista Marie Claire.