A menor fábrica de chocolate do mundo funciona num antigo quarto de empregada num apartamento no Morumbi e tem cerca de 5 m². É ali que a paulistana de 23 anos Luisa Abram produz chocolates com 70% e 81% de cacau a partir de grãos provenientes do Acre com atributos de qualidade que despertaram a atenção de chefs de São Paulo.
A brincadeira começou em março do ano passado, quando ela estudava gastronomia na Anhembi Morumbi e ganhou do pai o livro Elements of Dessert, de Francisco Migoya, publicado pelo The Culinary Institute of America (CIA). Viciada em preparar sobremesas, ela confessa não ter executado nenhum doce das 544 páginas do livro. Parou no capítulo que ensina a fazer chocolate – do grão à barra.
Seu pai, entusiasta de experiências na cozinha, estimulou Luisa na aventura. Passaram a ler muito sobre o assunto até descobrir que havia cacau na Amazônia. Cinco meses depois, em agosto, lá estavam os dois, Luisa e o pai, André, numa comunidade ribeirinha do Acre, onde uma cooperativa colhe cacau selvagem – não cultivado pelo homem.
Passaram quatro dias na casa dos ribeirinhos – sem cama, energia elétrica ou chuveiro. Dormiam em redes, banhavam-se em alguma curva do rio Purus. Para colher o cacau, galochas permitiam vencer a lama no joelho, na úmida Amazônia.
Depois de cruzarem a selva com sacos nas costas, os ribeirinhos descarregam o fruto em barcos, onde são abertos, para que os caroços com polpa cheguem ao centro de beneficiamento da comunidade. Lá, os grãos fermentam por sete dias e secam por outros cinco.
Luisa e o pai voltaram da viagem com 20 kg de amêndoas, pelos quais pagaram três vezes o valor do cacau no mercado internacional (“A logística na Amazônia é uma coisa maluca.”).
Até o fim do ano, enquanto ia reunindo equipamentos para sua pequena fábrica, a garota aproveitou para experimentar parâmetros – testou o amargor ideal do chocolate, que é torrado a 130ºC e só leva cacau e açúcar cristal orgânico.
Produto acertado, dali foi um passo para ela encomendar de uma designer amiga as embalagens – que são sóbrias, da cor do chocolate e com o logotipo que é uma flor de cacau dourada. No fim de janeiro, a papelaria ficou pronta e Luisa iniciou as vendas a alguns conhecidos. Uma barra de 40 g sai por R$ 15 no site (luisaabram.com.br).
Só quatro meses depois, em maio, ela decidiu procurar um chef para mostrar o que andava aprontando. Levou o chocolate para Gabriel Broide, do Mina, que fica no Hotel Botanique, em Campos do Jordão – ele havia dado palestra na faculdade de Luisa e, como ela tinha gostado dele, fez estágio lá por um mês no ano passado.
O resultado do encontro foi um impulso para os negócios. “Até então, eu não tinha confiança no meu produto. Ele foi uma espécie de mentor, me disse para eu colocar a cara na rua.” Foi o que ela fez ao bater à porta de Lis Cereja, da Enoteca Saint Vin Saint, que ficou sabendo do produto por um amigo e, depois, a recomendou para Ivan Ralston, do Tuju.
Ivan, Broide e Lis gostaram tanto que trocaram o chocolate que usavam na cozinha pelo de Luisa. Para dar conta da demanda que deve crescer (hoje são 12 kg de chocolate por semana), ela vai receber seis sacas de amêndoas (cada uma com 66 kg), cuja colheita acompanhou no Acre, em abril. Ela aproveitou a viagem para levar um termômetro de 80 cm para os ribeirinhos medirem a temperatura da fermentação com precisão.
A próxima etapa é comprar um moinho maior, com capacidade de 10 kg – o atual é de 3 kg. Isso vai ajudar também a atender a uma futura demanda do exterior, já que está negociando parceria de distribuição de seu chocolate em Nova York.
Para quem um dia sonhou em ser médica e tentou três vezes o vestibular do curso, sem sucesso, o mundo se abriu de outro jeito e tem deixado Luisa bem animada. “A gente tem um produto de boa qualidade, o cacau é dos trópicos. O Brasil tem potencial para ser reconhecido perante Bélgica e Suíça. Espero ver isso um dia.”
Intenso, aromático e amargo, mas não repuxa as bochechas
Tecnicamente bem feito, o chocolate de Luisa Abram cumpre os requisitos de um bom chocolate em características como aparência, aroma, textura e sabor.
Seus dois tipos de barra (70% cacau com 30% açúcar, e 81% cacau com 19% açúcar) têm a superfície brilhante, homogênea, sem marcas e manchas. O chocolate quebra fácil, com o crac seco, sem estilhaçar. Tem umidade, não é ressecado. Começa a amolecer facilmente nos dedos, devido ao alto teor de manteiga de cacau, ponto positivo. Na boca, textura aveludada, nada arenosa, e sabor intenso, sem que o amargor prevaleça. O 81% é mais sedoso, porque tem mais manteiga de cacau.
O cuidado de Luisa é tamanho que ela nem lava as fôrmas para não contaminá-las com aromas indesejados de detergente – não lava nenhuma delas, apenas as esquenta levemente para derreter a fina camada de manteiga de cacau que possa ter ficado do chocolate anterior.
Os chefs que andaram experimentando o chocolate da menina também dão seu aval. “No início, não botei muita fé, mas ele é bom de verdade, um dos melhores que já provei”, afirma Ivan Ralston, do Tuju. “Pela primeira vez, não saímos perdendo para chocolates como o Valrhona. É superaromático, parece que leva mel.”
A intensidade de aromas e sabores também chamou a atenção de Gabriel Broide, do Mina. “É um chocolate fora da curva, muito intenso, de sabor frutado. Luisa é uma menina muito corajosa”, diz.
Linha de produção adaptada a um cubículo
Fábrica completa. Neste cubículo, estão o forno industrial de convecção, o moinho de granito (à dir.), a máquina de temperagem (à esq.) e outros itens, como a mesa vibratória (para tirar microbolhas de ar do chocolate); no forno é onde tudo começa, com a torra das amêndoas
Improviso. Após a torra, os grãos são quebrados e descascados na máquina feita pelo pai com um moedor de café antigo e aspirador de pó
Moagem. Sem as cascas, os nibs vão para o moinho de granito, onde são esmagados por 12 horas e, de uma massa seca, viram líquido. Depois entra o açúcar cristal orgânico
Textura. O líquido que sai do moinho descansa em bandejas e cristaliza; o sabor está pronto, mas o chocolate ainda passa pela temperagem, processo que dá a textura lisa e aveludada à sua massa.
Sem areia. Esse líquido da moagem é testado num micrômetro, que mede quantos mícrons tem o chocolate. Quanto menos (abaixo de 20), melhor, para que a textura não seja arenosa.
Secador de cabelo, aspirador de pó…
Quando entrou em casa com 20 kg de amêndoas de cacau, Luisa Abram se perguntou: e agora? Ela não tinha equipamentos e sabia que, apesar de algumas etapas poderem ser feitas manualmente, era impossível fazer a moagem com as mãos.
Do grão à barra, o chocolate passa por quatro etapas: torra, descascamento, moagem e temperagem. Para a torra, ela usou o seu forno industrial, comprado na época da faculdade. Para quebrar as amêndoas, um moedor manual de cevada. Já a temperagem, que dá textura aveludada ao chocolate, pode ser feita com espátula num balcão.
Mas ela precisava de um moinho de granito. Então, uma coincidência ajudou a fabriqueta a nascer. O pai de Luisa estava com viagem marcada para Cingapura a trabalho e encomendou antecipadamente um moinho da Índia (US$ 500).
“Em setembro, fizemos o chocolate. Para separar as cascas, Nete, nossa empregada, jogava os grãos para cima e eu segurava o secador de cabelos para as cascas voarem”, conta Luisa.
Pouco depois, o pai, engenheiro de formação, montou – a partir de um desenho num blog – o separador de cascas. No topo, vai um moedor de café, herança da família do namorado de Luisa. Os grãos moídos caem numa estrutura de madeira e acrílico. Dois aspiradores de pó sugam as cascas à direita, enquanto os nibs caem, à esquerda e pela gravidade, num recipiente.
Por fim, a máquina de temperagem foi pedida pela Amazon (R$ 7.000) – e deu um susto na semana retrasada. “Meu pai a ligou em 220 volts e ela queimou. Eu tinha uma encomenda para entregar e fiquei desesperada. Daí chamamos um cara que foi top e consertou rapidinho.”
Fonte: Paladar