A estrela do clã que mudou o padrão da gastronomia brasileira critica os modismos na cozinha e diz por que alguns restaurantes morrem, enquanto outros nunca envelhecem.
Fonte: Veja Online
A história da alta gastronomia brasileira é a história do grupo Fasano, fundado em 1902. E a história do grupo Fasano, nos últimos trinta anos, é a história de Rogério Fasano, de 47, ex-punk, ex-estudante de cinema e atual nome por trás de nove entre dez empreendimentos retumbantes no universo dos hotéis e restaurantes do país. Devem-se a ele tanto a expansão do império da família, pelos mais caros metros quadrados do Brasil (e agora também do Uruguai – o próximo hotel será em Punta del Este), quanto a preservação do espírito da estirpe. Os prédios erguidos sob a iniciativa de Rogério Fasano não emulam o formato de bichos nem de frutas: são clássicos e elegantes, assim como o são os cardápios dos restaurantes que ele administra com obcecada dedicação. Lá, espumas e outros “modismos de estação” jamais terão lugar. A VEJA, o empresário falou da mudança de hábitos dos brasileiros à mesa, de comidas que vêm com iPod e explicou por que um pãozinho com manteiga pode, sim, custar 27 reais.
Desde os anos 80, o senhor abriu ou participou da abertura de quinze restaurantes de luxo no Brasil. No que diz respeito aos hábitos e gostos do brasileiro mais abastado, o que mudou?
Muita coisa. Na década de 80, quando abri meu primeiro restaurante em São Paulo, o hábito de reservar uma mesa, por exemplo, era visto como frescura, esnobismo. Os clientes também mandavam no cardápio. Diziam ao garçom: “Pede para fazer um filé à parmigiana”. E o garçom não podia responder: “Desculpe, senhor, não fazemos isso”. O cliente não estava perguntando se a casa fazia ou não. Ele queria comer aquele prato e pronto. Hoje, os cardápios dos restaurantes se impuseram. Outra diferença: 70% dos meus clientes jantavam com uma garrafa de uísque na mesa e, agora, 90% jantam com vinho. São Paulo, claro, já era uma metrópole, mas não tinha mais do que cinco ou seis restaurantes frequentados por pessoas de poder aquisitivo alto – entre eles, precursores como o Ca’d’Oro, que teve a ousadia de fazer uma culinária do norte da Itália nos anos 50 e, infelizmente, fechou no mês passado.
“O problema é o sujeito que pensa, como naquele lema do cinema novo, que basta ter uma ideia na cabeça e um sifão na mão para ser um grande chef. Para ser um grande chef, não basta ser considerado ‘moderno’”
Quando uma culinária deixa de ser clássica para ficar velha?
É uma linha tênue. E não foi o caso do Ca’d’Oro: ele não fechou porque a culinária envelheceu, mas porque foi engolido pela dinâmica da cidade e acabou ficando no lugar errado. Aliás, o mesmo ocorreu com o meu avô – nos anos 50, ele concentrou todos os negócios no centro paulistano, uma área que entrou em decadência no fim da década de 60. Para uma culinária se manter clássica sem ficar velha, é preciso que o preparo de certos clássicos seja atualizado. Nós mudamos a maneira como fazíamos os nossos risotos, por exemplo. Hoje, eles praticamente não levam manteiga nem parmesão. São servidos mais molhados, estão mais delicados. Continuamos dentro do clássico, mas de uma forma mais contemporânea. Agora, se um dia eu tiver de fazer espumas, como aqueles europeus, vou me sentir um derrotado.
O senhor se refere à “cozinha molecular”.
Cozinha para banguelas, como diz o (escritor e colunista de VEJA) Diogo Mainardi. Mas nós ainda temos dentes! Eu costumo comparar esse assunto ao rock: você tem um David Bowie, um Talking Heads, que seriam os equivalentes à cozinha clássica. Aí aparece a música eletrônica, que eu comparo às espumas, e as melodias com letras passam a ser consideradas antigas, tolas. Mas chega um Radiohead, e o que ele faz? Faz uma música que consegue ser um rock clássico, com letra, só que mais atual e moderno do que o que era feito nos anos 80. Ou seja, assim como a música eletrônica não tem futuro, as espumas vão desaparecer sem deixar vestígios – ou saudade.
Os chefs de cozinha hoje têm status de celebridade. Isso é melhor para eles do que para os donos de restaurante?
O problema não é esse, e sim quando o sujeito pensa, como naquele lema do cinema novo, que basta ter uma ideia na cabeça e um sifão na mão para ser um grande chef. Para ser um grande chef, não basta ser considerado “moderno”.
Até que ponto o sucesso de um restaurante está atrelado ao chef?
Olhe, pelo Fasano já passaram quatro chefs. Pelo (parisiense) La Tour d’Argent passaram dez…
O senhor já declarou que Claude Terrail, o proprietário já morto do La Tour d’Argent, é um de seus ídolos. O que o senhor admirava nele?
Passei três aniversários lá quando ele ainda era vivo. Quando entrava no salão, eu me arrepiava. Um sujeito que criou um ícone como o La Tour d’Argent! Sem contar aquela história de como ele escondeu, durante a II Guerra, mais da metade da adega do restaurante para que os alemães não achassem as garrafas. Emparedou tudo e passou noites com os empregados colando teias de aranha nos tijolos para parecer que elas estavam lá havia muito tempo, caso fossem encontradas. Até morrer, ele continuava indo de mesa em mesa, com a bengalinha: “Vous avez bien mangé?”. Os três degraus que eu mandei construir no salão do Fasano, em São Paulo, são uma homenagem a Terrail. São como os do Tour d’Argent. Mas são uma inspiração, não uma cópia. Cópia, eu acho o fim. Um restaurante não é um comedouro. Tem propriedade intelectual por trás. Copiar é menosprezar o trabalho de quem concebeu aquilo.
“Nunca entendi esse termo ‘cozinha honesta’. O que é isso? O bifinho estava duro, mas o preço era bom? Comida é boa ou é ruim. Em relação aos bons ingredientes, não há milagre: custam caro”
Diversos ex-funcionários do Fasano abriram restaurantes que são muito parecidos com os seus. O senhor considera isso uma cópia?
Eu fico orgulhoso por saber que o Fasano é uma grande escola, mas acho que muitos desses ex-funcionários poderiam ter dado um toque pessoal às suas casas. O sujeito se apropria até do meu passado, chega a falar “buon giorno”, ‘buona sera”, como se tivesse origem italiana! Uma coisa é você ter tido uma escola, outra é sair de lá e copiar até a cestinha de pão. Tem proprietário por aí que apresenta o restaurante dele dizendo que é um “Gero 30% mais barato” (um dos restaurantes de Fasano). O que é isso? Inclusive porque ninguém faz nada 30% mais barato impunemente. Aliás, se existe um termo que eu nunca entendi é esse da “cozinha honesta”. O que significa? O bifinho estava duro, mas o preço era bom? Em comida, isso não funciona. Comida ou é boa ou é ruim. E uma boa cozinha depende muito de bons ingredientes. Em relação a eles, não há milagre: custam caro.
Mas um couvert no Fasano custa 27 reais e é só um pãozinho com manteiga. O que justifica esse preço?
Isso é uma coisa que eu gostaria de esclarecer, porque ninguém no Brasil sabe o que é couvert. A palavra francesa vem do italiano coperto, que quer dizer, literalmente, “cobertura”. É aquilo que o restaurante cobra para garantir a reposição do que ele considera importante oferecer ao cliente. No meu caso, o copo de cristal Riedel que custa 30 dólares e que cedo ou tarde vai se quebrar, a porcelana importada, a toalha de linho egípcio etc.
Mas isso já não está embutido nos preços do cardápio?
Não, o que está no preço da comida é o custo da comida. Couvert é diferente. É o valor cobrado para que o restaurante mantenha sempre a categoria do material oferecido. E esse valor vai depender se os talheres são de prata de lei ou de inox, se o guardanapo mede 60 por 60 centímetros ou 20 por 20 centímetros. Couvert não tem nada a ver com pão de queijo, manteiga, parmesão… Por isso é um erro essa recomendação que certa crítica gastronômica instituiu no Brasil: a de não pedir couvert. É um absurdo. Na Itália, não existe “não pedir couvert”. Se você não quiser comer grissini, não come, mas ocoperto está lá e custa, sei lá, 10 euros. E vem só grissini, nem manteiga vem, porque italiano come três pratos e é contra empurrar antes para o cliente uma porção de coisas que só vão desvalorizar a comida a ser servida.
O que faz de alguém um grande maître ou um garçom perfeito?
Sobretudo, o timing: a hora de saber chegar e a hora de saber sair. Nós somos um pouco contra o excesso de serviço.
Um exemplo de excesso de serviço.
Você pedir um café e a pessoa trazer uma carta de café. Você tem de parar, olhar, perguntar. Aí, sua conversa foi para o vinagre. A gastronomia é o ponto número 1 de um restaurante, mas você não pode esquecer que é lá também que as pessoas pedem as outras em casamento, se conhecem, fecham negócios, põem a vida em dia. O garçom que a toda hora pergunta se está tudo bem é infernal. Eu estive recentemente num restaurante considerado muito moderno na Inglaterra em que cada prato vinha com cinco minutos de explicação. Quer dizer, parece que você vai lá com um único propósito: aplaudir o chef – isso se você gostar da comida. Nesse restaurante, eu não consegui comer sorvete de bacon, entre várias outras coisas. Chegaram a me dar um iPod entre um prato e outro para que eu ouvisse música durante a degustação. São exageros que me dão ataques de riso. Não gosto desse excesso de modismos. Mas pior do que sorvete de bacon é o que eles chamam de fusion food. Cozinha tem fronteiras, sim. Espaguete italiano com molho asiático? Estou fora.
Que ingrediente jamais entrará num restaurante Fasano?
Azeite de trufas. Simplesmente porque não tem trufa. Eu amo trufas, mas as de verdade. O azeite de trufas é um dos modismos mais idiotas da gastronomia e tem gosto de petróleo. Outra coisa que não farei jamais é trazer chefes modernistas para fazer um jantar autointitulado “jantar do século”. É muita pretensão.
O que você acha dos chefs ultrapopulares que fazem sucesso na TV, como o inglês Jamie Oliver?
Eu tenho resistência a programas de TV que mostram um crítico provando uma comida e dizendo: “Vocês não sabem como isso está bom”. Acho um completo despropósito. Agora, quando ensinam a fazer comida, acho bárbaro. E ninguém tem o ritmo de televisão, a simpatia e o carisma do Jamie Oliver. Eu me identifico muito com a forma como ele vê a gastronomia. Para ele, um sanduíche pode ser de rara categoria, não é só a alta gastronomia que é interessante.
Alguns críticos dizem que ele não sabe o que é alta gastronomia.
Os críticos dizem também que o restaurante dele é muito ruim. Amigos meus que foram me disseram o mesmo. Nunca fui, inclusive porque não quero desgostar dele. Acho que o Jamie Oliver não deveria ter um restaurante: ele deveria concentrar-se em falar sobre gastronomia. Já eu jamais saberia fazer um programa de TV, até porque sou gago.
Qual é o grande prazer de ser um restaurateur?
Bom, antes de ter o prazer, vem a parte ruim: você não tem horário para chegar em casa, não tem fim de semana e sua vida familiar é complicada – tanto assim que os donos de restaurante que conseguem manter um casamento são raríssimos. Eu mesmo já me separei algumas vezes. Meu maior prazer é jantar às 2 da manhã no meu restaurante, abrir a última garrafa de vinho da noite com o salão absolutamente vazio, sabendo que esteve abarrotado até pouco tempo atrás. Há um quê de teatral nessa cena, é como se eu tivesse participado de um espetáculo ao vivo. Quando vejo que tudo deu certo, a noite foi bárbara e todo mundo saiu contente, o prazer é muito grande. Quase sempre fico até a última mesa se esvaziar e sei pelo “tchau” que me dão se foi tudo ótimo. Quando passo quatro, cinco dias sem isso, começo a ficar nervoso. Eu preciso desse último “tchau”.