Restaurantes… Cuidado!

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Chefs brasileiros dissecam os bastidores dos restaurantes e revelam por que se deve evitar peixes às segundas, brunches e o prato do dia.

Fonte: http://tealotus9.blogspot.com/

Restaurantes são locais antagônicos

Dois mundos opostos convivem em torno de um objetivo comum: empanzinar o cliente. De um lado, o salão, com suas toalhas imaculadas, musiquinha ambiente no tom certo, iluminação adequada e a polidez dos garçons. De outro, no interior das cozinhas, fumaça, suor (a temperatura chega a 60 graus), barulho e brigas. Muitas. Há um pacto informal entre cozinheiros, ajudantes e lava-louças sobre o que ocorre nos bastidores dos restaurantes. No ano passado, o chef americano Anthony Bourdain, do Les Halles, bistrô francês de Manhattan, rompeu o silêncio ao publicar suas memórias em Kitchen Confidential. O livro virou best-seller (a primeira edição ficou 14 semanas na lista de mais vendidos do New York Times), mas provocou a ira de colegas ao desnudar o obscuro mundo das cozinhas.

Sem medir as palavras, Bourdain revela como chefs transformam sobras em pratos do dia, conta que servem peixe velho às segundas-feiras e consideram fãs de carne bem passada a segunda raça mais desprezível do planeta, atrás apenas dos vegetarianos. Bourdain também descreve as cozinhas nova-iorquinas como antros povoados por bêbados, ex-prisioneiros e imigrantes chicanos. Mesmo que tenha carregado nas tintas, o relato de Bourdain é confirmado, em parte, por alguns chefs brasileiros. É evidente que todos repetem a mesma frase: ”No meu não é assim, mas eu sei que no…”. Ainda assim, o relato é relevante pois eles contam o que viram, o que sabem e o que ouviram falar.

Pior do que o choque com o clima selvagem das cozinhas é descobrir os truques usados pelos chefs para agilizar o preparo ou economizar ingredientes.

Pedir o prato do dia achando que se está comendo o que há de melhor na casa, por exemplo, é uma das armadilhas mais traiçoeiras.

”No meu não é assim, mas, em geral, todo mundo acha que está comendo ingredientes fresquinhos, escolhidos a dedo pelo chef. Só que quase todos os restaurantes aproveitam o prato do dia para utilizar produtos com data de validade quase vencida”, afirma Flávia Quaresma, dona do restaurante Câreme.

Outro truque para desovar sobras da semana são os brunches dominicais. ”Eu não vou a brunch de jeito nenhum. So um chef consciencioso resiste à tentação de utilizar ingredientes que sobraram de sexta e sábado nos pratos do brunch, mas há poucos chefs assim”, diz Atala.

”Pode ter certeza que o salmão prestes a vencer vira rilette no brunch”, diz Flávia. ”E tem outro problema: bons chefs odeiam preparar brunch. Todo mundo está de mau humor, cansado, é um castigo. E eu não quero minha comida preparada assim. ”Mesmo em Nova York , terra que criou o misto de café com almoço dominical, o brunch é uma tremenda roubada.

”Lá todo mundo sabe que brunch é sobra. É por isso que os pratos são tão fartos. O objetivo é se livrar do que está velho e ainda lucrar com isso”, conta o carioca Felipe Bronze, 23, que já trabalhou no Le Bernardin, Nobu e Four Seasons, todos estreladíssimos restaurantes de Nova York.

Os 20 dias da carne

Comer peixe às segundas-feiras é um das mais ardilosas armadilhas proporcionadas pelos restaurantes.

Anote: a chance de você comer na segunda um peixe que está na geladeira há quatro dias é de quase 100%.

Em geral, as boas casas recebem duas a três entregas de peixe fresco por semana. O carregamento de sexta é o mais turbinado porque vai sustentar o movimento até terça, quando chega um novo carregamento. Ou seja: o peixe de segunda é o de sexta, que foi pescado na quinta. ”Só como peixe às segundas em restaurantes que sei que compram marisco fresco todo dia, direto dos pescadores, como o Margutta”, diz Flávia Quaresma.

A casa, especializada em peixes e considerada uma das melhores do Rio, de fato tem uma ponte direta com mergulhadores. ”Eles pescam com arpão e trazem, todo dia, pelo menos uns dez badejos e garoupas”, diz Conceição Neroni, proprietária do Margutta. Como nem todo mundo conhece o rol de fornecedores dos restaurantes, a melhor maneira de não mastigar peixe caduco é pedir o prato às terças e sextas-feiras.

Outra observação sobre peixes é feita por Gianni Cestroni, dono do Grottamare: ”Depois de três dias de ressaca no mar, não há quem sirva peixe fresco”, afirma. ”Entre 1 e 2 de agosto, não havia peixe fresco em nenhum local das redondezas do Rio. Quem disser que tinha, mentiu”, afirma.

E quanto à carne?

A idade da carne é um dos maiores mistérios para quem está fora das cozinha.

Pouca gente sabe, mas, no Rio, todo T-bone steak servido (um corte especial da carne bovina) é importado de São Paulo. Isso significa que o corte nunca estará com todo seu viço. ”Os bons fornecedores estão lá, não tem jeito. Mas o T-bone é nossa única carne que não é fresca”, diz Wagner Spalla, chef do moderninho 0/0, no Planetário da Gávea.

Uma das sagas mais bizarras é a do filé.

Segundo relatam os chefs, a grande peça de filé mignon passa por estágios longuíssimos até se transformar em escalopinho.

”No meu não é assim mas, já trabalhei em um restaurante em que o medalhão de filé que sobrava era cortado em tirinhas e virava escalope. Se também não vendia, virava algum prato empanado, tipo bife à milanesa. Uns 20 dias depois, quando já estava no limite da validade, era moído e transformado em ragú (molho bolonhesa)”, conta Atala.

Blargh!

A cena descrita é mesmo de arrepiar, mas reciclar pratos e ingredientes é uma prática corriqueira nos restaurantes. O que sobra dos biscoitinhos servidos com o café e dos pães do couvert, por exemplo, é invariavelmente transferido para as cestinhas da próxima mesa.

No restaurante do prédio do Jockey Club no centro do Rio, onde só se pode comer vestindo terno e gravata, batatas chips e o arroz de brócolis que ficam na travessa também são reaproveitados. A cena foi presenciada pela reportagem da Domingo.

Quem freqüenta japoneses deve ter cuidado com a reciclagem. Sabe aquela saladinha verde com uns nacos de kani-kama? Pois é. Em geral, o kani exposto no sushi bar de restaurantes costuma ser desfiado para dar cor às saladas do dia seguinte. ”Pratos que usam carne desfiada, não passam de maneiras criativas de reaproveitar um alimento”, diz Flávia Quaresma.

O melhor dia é quarta-feira.

Para ter certeza de estar comendo produtos frescos, só há uma saída: escolher restaurantes muito movimentados, onde quase não há sobras de comida.

”O segredo da comida fresca é a rotatividade”, afirma Bronze, usando as mesmas palavras escolhidas por Bourdain em seu livro para ensinar ao povo do salão a driblar as roubadas impostas pelo bando da cozinha.

Sob essa ótica, é muito melhor comer um filé no Brazeiro da Gávea é altamente seguro. Também vale à pena escolher pratos que sejam a especialidade da casa, que têm mais saída e, por isso, muito mais chances de serem frescos.

”Acho arriscado pedir pedir peixe num lugar em que a especialidade é carne. Eu não peço nunca”, diz o chef Francesco di Carli, do Cipriani, no Copacabana Palace.

Em Kitchen Confidential, Bourdain vai mais além, condenando casas com cardápios gigantes, que servem de tudo um pouco. ”Se o restaurante está cheio e você vê que o prato que mais sai é a bouillabaisse (uma sopa de peixes), ela é provavelmente a melhor opção. Mas fuja de lugares com menus extensos e variados, principalmente se estiverem semi-vazios”, escreveu o chef.

Outro mito a se desvendar diz respeito a frequentar restaurantes em dias de pouco movimento, como segundas e terça-feiras. ”Por incrível que pareça, é nos dias mais calmos que acontecem os maiores desastres. Os funcionários ficam desatentos, a máquina não está azeitada, e acontece um erro atrás do outro: a massa passa do ponto, o filé idem, o peixe fica muito salgado. Acho que a gente trabalha melhor sob pressão”, diz o consultor Luciano Boseggia, ex-chef do paulista Fasano durante 14 anos.

O chef Bourdain prega que quem quer ser bem atendido deve concentrar as idas a restaurantes nas terças, quartas e quintas.

”No domingo e na segunda, a equipe está exausta e muitos ingredientes, passados. Na sexta e no sábado, a comida é fresca, mas o chef não pode prestar tanta atenção no preparo do prato porque está sobrecarregado. Além disso, os fins de semana atraem uma horda de clientes mais interessados no movimento do que na comida, e os chefs terminam priorizando a rapidez do que a qualidade”, diz.

Há um tipo de cliente que irrita mais ainda os chefs do que os gourmets de fim de semana: aqueles que devolvem pratos alegando que a carne está mal passada.

”Quando o garçom traz de volta um peixe ou um magret de pato porque o cliente reclama que está mal passado, todo mundo na cozinha corre para a janela para ver a cara do sujeito. Quase sempre são mulheres magérrimas ou gente que não tem a menor cara de saber apreciar um bom prato”, diz Alex Atala, que jura que o infeliz não sofre retaliação. ”O prato pode demorar um pouco mais a sair, mas é só.”

Na semana passada, uma mulher que devolveu duas vezes um salmão grelhado no moderninho 0/0, na Gávea, tirou do sério o normalmente inabalável chef Wagner Spalla. ”Isso é coisa de pobre que não sabe que salmão não pode ser servido esturricado. Mas vai fazer o quê?”, diz Spalla, que, depois de jogar no lixo os dois salmões devolvidos, resolve grelhar sem dó o filé escolhido pela cliente rebelde em sua terceira tentativa. (Mesmo o inabalável Christophe Lidy, do Garcia & Rodrigues, tem ataques quando isso acontece). Minutos depois, o garçom volta da mesma mesa devolvendo um talharim negro com lulas fritas. A reclamação é idêntica: as lulas estariam mal passadas. ”Põe aí na panela e frita de novo. Vai ficar que nem chiclete”, diz Spalla (ao contrário do salmão, que não pode voltar à grelha, as lulas são fritas novamente até ficar ao gosto bizarro da cliente).

Também é equivocada a idéia de que, na cozinha, todos os clientes são tratados iguais. Quase todos os restaurantes têm olheiros que alertam os chefs sempre que alguma personalidade chega ao restaurante. ”Quando era chef da cozinha do Fasano, toda vez que o presidente do Bradesco chegava, a gente era avisado”, conta Boseggia.

No DOM, Atala também acompanha o entra-e-sai de famosos pelas paredes de vidro da cozinha, mas diz que quem conquista o coração dos cozinheiros são anônimos que sabem escolher o prato certo. ”Claro que o chef trabalha com mais gosto para o cliente que pede atum mal passado porque ele sabe que está cozinhando para alguém que vai apreciar o prato. Já quem pede uma sola de sapato não vai contar com a mesma boa vontade”, diz.

Sujos e brutos.

Um dos capítulos mais assustadores (sim, quando se lê sobre comida, as revelações podem ser mesmo assustadoras) de Kitchen Confidential trata do ambiente das cozinhas. Bourdain descreve cenas pestilentas, expõe facetas sombrias (por exemplo, a de que muitos restaurantes em Nova York servem para lavar dinheiro da máfia) e diz que ali habita o lúmpen, os párias da sociedade.

”Para trabalhar na cozinha, tem que ser outsider por natureza. Gostar de trabalhar à noite, de viajar muito. Sem esse perfil, não vale à pena”, diz Felipe Bronze.

No Rio e em São Paulo, as cozinhas dos restaurantes estrelados são dominadas por nordestinos. Ao contrário dos chicanos de Nova York, eles são mais empenhados e, muitos, acabaram virando proprietários ou chefs de restaurantes em que começaram como lava-pratos.

”Na minha cozinha tinha um Piauí, uns três Bahia, dois Ceará. O mapa do Nordeste inteiro estava lá dentro. Eram profissionais de qualidade”, diz Boseggia.

O clima nas cozinhas brasileiras não é tão junkie como no exterior, mas algo têm em comum: a brutalidade.

Na quinta-feira passada, Léo, ajudante de cozinha do Zazá Bistrô, em Ipanema, ficou de castigo ao errar o ponto do salmão grelhado. A lentidão irritou o chef boliviano Checho Gonzales, que puniu o garoto rebaixando-o para uma função ”menor” – no caso, picar salmão – além de transformá-lo em alvo das chacotas do grupo. ”Inútil, vagabundo e débil mental” foram algumas das alcunhas a ele atribuídas. Sempre de preto e com o braço coberto de tatuagens, o boliviano é o protótipo de chef gauche: solta palavrões compulsivamente, sua em bicas e faz a minúscula e calorenta cozinha do Zazá parecer ainda menor e mais quente.

Checho não é o único que dirige o restaurante com mão-de-ferro.

Às 22h, ataques coléricos recheados de palavrão ecoam de quase todas as cozinhas. Em seu restaurante, Atala também não poupa berros e xingamentos. Os clientes não escutam porque cozinha e salão são separados por um vidro anti-ruído. ”Prato salgado ou fora do ponto me tiram do sério. Fico bravo, grito muito”, diz Atala.

Nas cozinhas, como nada pode dar errado, a disciplina é militar. Além da humilhação oral, muitos chefes apelam para castigos, tradição herdada da escola culinária francesa.

A chef Flávia Quaresma perdeu as contas de quantas vezes ficou sem jantar como punição por barbeiragens feitas enquanto estagiava com Guy Savoy, um dos mais respeitados chefs franceses. ”O Guy exigia que todo mundo andasse na cozinha com o uniforme impecável. Logo nos primeiros dias, deixei cair um pote cheio de molho de soja em cima de mim. Quando ele me viu toda preta e perguntou por que eu não havia trocado de roupa. Como eu não tinha uma muda limpa, ele me castigou: fiquei sem jantar”, lembra.

Boazinha, Flávia deixa seus cozinheiros até fazerem ”montinho”. ”Eles guardam num cantinho alguns pedações de filé que sobraram do prato de algum cliente para comer depois”, diz a chef.

Outro ponto de convergência entre cozinhas brasileiras e estrangeiras diz respeito à limpeza.

Não precisa ser um maníaco para sentir um leve arrepio ao presenciar cenas rotineiras: chefes e ajudantes metem o dedo na panela e na boca sem o menor constrangimento, garçons usam a mesma mão que carrega bandejas para ajeitar o alface que teima em escorregar do prato e ajudantes limpam o molhinho que sujou o prato com um pano imundo, que eles prendem no avental.

Mais uma vez, não se trata de mera especulação.

Domingo passou um dia inteiro em quatro grandes restaurantes do Rio. Ali, vimos de tudo.

Como as cozinhas são pequenas, a água da pia usada para lavar pratos invade todo o espaço e não há pano de chão que consiga manter o assoalho seco. Por volta das 22h, a minúscula cozinha do Zazá Bistrô vira uma sauna (No Fasano, Boseggia já mediu a temperatura: 60 graus): o cheiro de condimentos asiáticos misturado a óleo e ervas aromáticas sufoca. O chão constantemente molhado obriga cozinheiros a deslizar em vez de andar. ”Isso aqui é o meu inferno”, diz o chef Checho Gonzales. ”É preciso ser um pouco louco e gostar muito para aguentar”, afirma Alex Atala.

Restaurantes são locais antagônicos

Dois mundos opostos convivem em torno de um objetivo comum: empanzinar o cliente. De um lado, o salão, com suas toalhas imaculadas, musiquinha ambiente no tom certo, iluminação adequada e a polidez dos garçons. De outro, no interior das cozinhas, fumaça, suor (a temperatura chega a 60 graus), barulho e brigas. Muitas. Há um pacto informal entre cozinheiros, ajudantes e lava-louças sobre o que ocorre nos bastidores dos restaurantes. No ano passado, o chef americano Anthony Bourdain, do Les Halles, bistrô francês de Manhattan, rompeu o silêncio ao publicar suas memórias em Kitchen Confidential. O livro virou best-seller (a primeira edição ficou 14 semanas na lista de mais vendidos do New York Times), mas provocou a ira de colegas ao desnudar o obscuro mundo das cozinhas.

Sem medir as palavras, Bourdain revela como chefs transformam sobras em pratos do dia, conta que servem peixe velho às segundas-feiras e consideram fãs de carne bem passada a segunda raça mais desprezível do planeta, atrás apenas dos vegetarianos. Bourdain também descreve as cozinhas nova-iorquinas como antros povoados por bêbados, ex-prisioneiros e imigrantes chicanos. Mesmo que tenha carregado nas tintas, o relato de Bourdain é confirmado, em parte, por alguns chefs brasileiros. É evidente que todos repetem a mesma frase: ”No meu não é assim, mas eu sei que no…”. Ainda assim, o relato é relevante pois eles contam o que viram, o que sabem e o que ouviram falar.

Pior do que o choque com o clima selvagem das cozinhas é descobrir os truques usados pelos chefs para agilizar o preparo ou economizar ingredientes.
Pedir o prato do dia achando que se está comendo o que há de melhor na casa, por exemplo, é uma das armadilhas mais traiçoeiras.

”No meu não é assim, mas, em geral, todo mundo acha que está comendo ingredientes fresquinhos, escolhidos a dedo pelo chef. Só que quase todos os restaurantes aproveitam o prato do dia para utilizar produtos com data de validade quase vencida”, afirma Flávia Quaresma, dona do restaurante Câreme.

Outro truque para desovar sobras da semana são os brunches dominicais. ”Eu não vou a brunch de jeito nenhum. So um chef consciencioso resiste à tentação de utilizar ingredientes que sobraram de sexta e sábado nos pratos do brunch, mas há poucos chefs assim”, diz Atala.

”Pode ter certeza que o salmão prestes a vencer vira rilette no brunch”, diz Flávia. ”E tem outro problema: bons chefs odeiam preparar brunch. Todo mundo está de mau humor, cansado, é um castigo. E eu não quero minha comida preparada assim. ”Mesmo em Nova York , terra que criou o misto de café com almoço dominical, o brunch é uma tremenda roubada.

”Lá todo mundo sabe que brunch é sobra. É por isso que os pratos são tão fartos. O objetivo é se livrar do que está velho e ainda lucrar com isso”, conta o carioca Felipe Bronze, 23, que já trabalhou no Le Bernardin, Nobu e Four Seasons, todos estreladíssimos restaurantes de Nova York.

Os 20 dias da carne

Comer peixe às segundas-feiras é um das mais ardilosas armadilhas proporcionadas pelos restaurantes.
Anote: a chance de você comer na segunda um peixe que está na geladeira há quatro dias é de quase 100%.

Em geral, as boas casas recebem duas a três entregas de peixe fresco por semana. O carregamento de sexta é o mais turbinado porque vai sustentar o movimento até terça, quando chega um novo carregamento. Ou seja: o peixe de segunda é o de sexta, que foi pescado na quinta. ”Só como peixe às segundas em restaurantes que sei que compram marisco fresco todo dia, direto dos pescadores, como o Margutta”, diz Flávia Quaresma.

A casa, especializada em peixes e considerada uma das melhores do Rio, de fato tem uma ponte direta com mergulhadores. ”Eles pescam com arpão e trazem, todo dia, pelo menos uns dez badejos e garoupas”, diz Conceição Neroni, proprietária do Margutta. Como nem todo mundo conhece o rol de fornecedores dos restaurantes, a melhor maneira de não mastigar peixe caduco é pedir o prato às terças e sextas-feiras.

Outra observação sobre peixes é feita por Gianni Cestroni, dono do Grottamare: ”Depois de três dias de ressaca no mar, não há quem sirva peixe fresco”, afirma. ”Entre 1 e 2 de agosto, não havia peixe fresco em nenhum local das redondezas do Rio. Quem disser que tinha, mentiu”, afirma.

E quanto à carne?

A idade da carne é um dos maiores mistérios para quem está fora das cozinha.

Pouca gente sabe, mas, no Rio, todo T-bone steak servido (um corte especial da carne bovina) é importado de São Paulo. Isso significa que o corte nunca estará com todo seu viço. ”Os bons fornecedores estão lá, não tem jeito. Mas o T-bone é nossa única carne que não é fresca”, diz Wagner Spalla, chef domoderninho 0/0, no Planetário da Gávea.

Uma das sagas mais bizarras é a do filé.

Segundo relatam os chefs, a grande peça de filé mignon passa por estágios longuíssimos até se transformar em escalopinho.

”No meu não é assim mas, já trabalhei em um restaurante em que o medalhão de filé que sobrava era cortado em tirinhas e virava escalope. Se também não vendia, virava algum prato empanado, tipo bife à milanesa. Uns 20 dias depois, quando já estava no limite da validade, era moído e transformado em ragú (molho bolonhesa)”, conta Atala.

Blargh!

A cena descrita é mesmo de arrepiar, mas reciclar pratos e ingredientes é uma prática corriqueira nos restaurantes. O que sobra dos biscoitinhos servidos com o café e dos pães do couvert, por exemplo, é invariavelmente transferido para as cestinhas da próxima mesa.
No restaurante do prédio do Jockey Club no centro do Rio, onde só se pode comer vestindo terno e gravata, batatas chips e o arroz de brócolis que ficam na travessa também são reaproveitados. A cena foi presenciada pela reportagem da Domingo.

Quem freqüenta japoneses deve ter cuidado com a reciclagem. Sabe aquela saladinha verde com uns nacos de kani-kama? Pois é. Em geral, o kani exposto no sushi bar de restaurantes costuma ser desfiado para dar cor às saladas do dia seguinte. ”Pratos que usam carne desfiada, não passam de maneiras criativas de reaproveitar um alimento”, diz Flávia Quaresma.

O melhor dia é quarta-feira.

Para ter certeza de estar comendo produtos frescos, só há uma saída: escolher restaurantes muito movimentados, onde quase não há sobras de comida.

”O segredo da comida fresca é a rotatividade”, afirma Bronze, usando as mesmas palavras escolhidas por Bourdain em seu livro para ensinar ao povo do salão a driblar as roubadas impostas pelo bando da cozinha.

Sob essa ótica, é muito melhor comer um filé no Brazeiro da Gávea é altamente seguro. Também vale à pena escolher pratos que sejam a especialidade da casa, que têm mais saída e, por isso, muito mais chances de serem frescos.

”Acho arriscado pedir pedir peixe num lugar em que a especialidade é carne. Eu não peço nunca”, diz o chef Francesco di Carli, do Cipriani, no Copacabana Palace.

Em Kitchen Confidential, Bourdain vai mais além, condenando casas com cardápios gigantes, que servem de tudo um pouco. ”Se o restaurante está cheio e você vê que o prato que mais sai é a bouillabaisse (uma sopa de peixes), ela é provavelmente a melhor opção. Mas fuja de lugares com menus extensos e variados, principalmente se estiverem semi-vazios”, escreveu o chef.

Outro mito a se desvendar diz respeito a frequentar restaurantes em dias de pouco movimento, como segundas e terça-feiras. ”Por incrível que pareça, é nos dias mais calmos que acontecem os maiores desastres. Os funcionários ficam desatentos, a máquina não está azeitada, e acontece um erro atrás do outro: a massa passa do ponto, o filé idem, o peixe fica muito salgado. Acho que a gente trabalha melhor sob pressão”, diz o consultor Luciano Boseggia, ex-chef do paulista Fasano durante 14 anos.
O chef Bourdain prega que quem quer ser bem atendido deve concentrar as idas a restaurantes nas terças, quartas e quintas.

”No domingo e na segunda, a equipe está exausta e muitos ingredientes, passados. Na sexta e no sábado, a comida é fresca, mas o chef não pode prestar tanta atenção no preparo do prato porque está sobrecarregado. Além disso, os fins de semana atraem uma horda de clientes mais interessados no movimento do que na comida, e os chefs terminam priorizando a rapidez do que a qualidade”, diz.

Há um tipo de cliente que irrita mais ainda os chefs do que os gourmets de fim de semana: aqueles que devolvem pratos alegando que a carne está mal passada.

”Quando o garçom traz de volta um peixe ou um magret de pato porque o cliente reclama que está mal passado, todo mundo na cozinha corre para a janela para ver a cara do sujeito. Quase sempre são mulheres magérrimas ou gente que não tem a menor cara de saber apreciar um bom prato”, diz Alex Atala, que jura que o infeliz não sofre retaliação. ”O prato pode demorar um pouco mais a sair, mas é só.”

Na semana passada, uma mulher que devolveu duas vezes um salmão grelhado no moderninho 0/0, na Gávea, tirou do sério o normalmente inabalável chef Wagner Spalla. ”Isso é coisa de pobre que não sabe que salmão não pode ser servido esturricado. Mas vai fazer o quê?”, diz Spalla, que, depois de jogar no lixo os dois salmões devolvidos, resolve grelhar sem dó o filé escolhido pela cliente rebelde em sua terceira tentativa. (Mesmo o inabalável Christophe Lidy, do Garcia & Rodrigues, tem ataques quando isso acontece). Minutos depois, o garçom volta da mesma mesa devolvendo um talharim negro com lulas fritas. A reclamação é idêntica: as lulas estariam mal passadas. ”Põe aí na panela e frita de novo. Vai ficar que nem chiclete”, diz Spalla (ao contrário do salmão, que não pode voltar à grelha, as lulas são fritas novamente até ficar ao gosto bizarro da cliente).
Também é equivocada a idéia de que, na cozinha, todos os clientes são tratados iguais. Quase todos os restaurantes têm olheiros que alertam os chefs sempre que alguma personalidade chega ao restaurante. ”Quando era chef da cozinha do Fasano, toda vez que o presidente do Bradesco chegava, a gente era avisado”, conta Boseggia.

No DOM, Atala também acompanha o entra-e-sai de famosos pelas paredes de vidro da cozinha, mas diz que quem conquista o coração dos cozinheiros são anônimos que sabem escolher o prato certo. ”Claro que o chef trabalha com mais gosto para o cliente que pede atum mal passado porque ele sabe que está cozinhando para alguém que vai apreciar o prato. Já quem pede uma sola de sapato não vai contar com a mesma boa vontade”, diz.

Sujos e brutos.

Um dos capítulos mais assustadores (sim, quando se lê sobre comida, as revelações podem ser mesmo assustadoras) de Kitchen Confidential trata do ambiente das cozinhas. Bourdain descreve cenas pestilentas, expõe facetas sombrias (por exemplo, a de que muitos restaurantes em Nova York servem para lavar dinheiro da máfia) e diz que ali habita o lúmpen, os párias da sociedade.
”Para trabalhar na cozinha, tem que ser outsider por natureza. Gostar de trabalhar à noite, de viajar muito. Sem esse perfil, não vale à pena”, diz Felipe Bronze.

No Rio e em São Paulo, as cozinhas dos restaurantes estrelados são dominadas por nordestinos. Ao contrário dos chicanos de Nova York, eles são mais empenhados e, muitos, acabaram virando proprietários ou chefs de restaurantes em que começaram como lava-pratos.

”Na minha cozinha tinha um Piauí, uns três Bahia, dois Ceará. O mapa do Nordeste inteiro estava lá dentro. Eram profissionais de qualidade”, diz Boseggia.

O clima nas cozinhas brasileiras não é tão junkie como no exterior, mas algo têm em comum: a brutalidade.

Na quinta-feira passada, Léo, ajudante de cozinha do Zazá Bistrô, em Ipanema, ficou de castigo ao errar o ponto do salmão grelhado. A lentidão irritou o chef boliviano Checho Gonzales, que puniu o garoto rebaixando-o para uma função ”menor” – no caso, picar salmão – além de transformá-lo em alvo das chacotas do grupo. ”Inútil, vagabundo e débil mental” foram algumas das alcunhas a ele atribuídas.

Sempre de preto e com o braço coberto de tatuagens, o boliviano é o protótipo de chef gauche: solta palavrões compulsivamente, sua em bicas e faz a minúscula e calorenta cozinha do Zazá parecer ainda menor e mais quente.

Checho não é o único que dirige o restaurante com mão-de-ferro.

Às 22h, ataques coléricos recheados de palavrão ecoam de quase todas as cozinhas. Em seu restaurante, Atala também não poupa berros e xingamentos. Os clientes não escutam porque cozinha e salão são separados por um vidro anti-ruído. ”Prato salgado ou fora do ponto me tiram do sério. Fico bravo, grito muito”, diz Atala.

Nas cozinhas, como nada pode dar errado, a disciplina é militar. Além da humilhação oral, muitos chefes apelam para castigos, tradição herdada da escola culinária francesa.

A chef Flávia Quaresma perdeu as contas de quantas vezes ficou sem jantar como punição por barbeiragens feitas enquanto estagiava com Guy Savoy, um dos mais respeitados chefs franceses. ”O Guy exigia que todo mundo andasse na cozinha com o uniforme impecável. Logo nos primeiros dias, deixei cair um pote cheio de molho de soja em cima de mim. Quando ele me viu toda preta e perguntou por que eu não havia trocado de roupa. Como eu não tinha uma muda limpa, ele me castigou: fiquei sem jantar”, lembra.

Boazinha, Flávia deixa seus cozinheiros até fazerem ”montinho”. ”Eles guardam num cantinho alguns pedações de filé que sobraram do prato de algum cliente para comer depois”, diz a chef.

Outro ponto de convergência entre cozinhas brasileiras e estrangeiras diz respeito à limpeza.

Não precisa ser um maníaco para sentir um leve arrepio ao presenciar cenas rotineiras: chefes e ajudantes metem o dedo na panela e na boca sem o menor constrangimento, garçons usam a mesma mão que carrega bandejas para ajeitar o alface que teima em escorregar do prato e ajudantes limpam o molhinho que sujou o prato com um pano imundo, que eles prendem no avental.

Mais uma vez, não se trata de mera especulação.

Domingo passou um dia inteiro em quatro grandes restaurantes do Rio. Ali, vimos de tudo.
Como as cozinhas são pequenas, a água da pia usada para lavar pratos invade todo o espaço e não há pano de chão que consiga manter o assoalho seco. Por volta das 22h, a minúscula cozinha do Zazá Bistrô vira uma sauna (No Fasano, Boseggia já mediu a temperatura: 60 graus): o cheiro de condimentos asiáticos misturado a óleo e ervas aromáticas sufoca. O chão constantemente molhado obriga cozinheiros a deslizar em vez de andar. ”Isso aqui é o meu inferno”, diz o chef Checho Gonzales. ”É preciso ser um pouco louco e gostar muito para aguentar”, afirma Alex Atala.

MARIA TEREZA

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