As crianças se deliciam com os ovos de Páscoa sem conhecer a origem do chocolate.
Fonte: www.estadao.com.br
Poucos adultos, inclusive, sabem que por trás da venerada guloseima se esconde o suor de anônimos agricultores. Cacau depende do campo.
Fruta originária da América Central, a bebida de cacau era considerada sagrada pelos antigos maias, na civilização pré-colombiana. Foi o próprio Cristóvão Colombo quem levou, em 1502, as primeiras sementes da inusitada planta para a Europa, entregando-as diretamente ao rei Fernando II. Pouco adiantou.
Espécie tropical por excelência, o cacaueiro gosta de calor, mas cresce na sombra. Por essa razão, plantado sob a mata atlântica, bem se aclimatou na região de Ilhéus. Ali, no sul da Bahia, floresceu uma singular economia, com apogeu na década de 1920. Época latifundiária.
Cenário dos magníficos romances de Jorge Amado, a opulenta, porém desigual, oligarquia cacaueira surge retratada em Cacau (1933), São Jorge dos Ilhéus (1944) e, mais tarde, no inesquecível livro Gabriela, Cravo e Canela (1958). Ainda hoje os baianos lideram as plantações de cacau, concentrando 67% da produção nacional. Segue-se, longe, o Pará (21%).
Engana-se, porém, quem pensa que o País manda no mercado. A liderança mundial está na Costa do Marfim, oeste africano, cuja cacauicultura supera em quase seis vezes a brasileira. À frente do Brasil, no ranking mundial, ainda se encontram Gana, Indonésia e Nigéria. Quem diria.
O “tchocolath”, um licor valioso, era utilizado nos rituais religiosos e nas cerimônias importantes daquele ancestral povo mexicano. A bebida, também considerada medicinal, se fabrica a partir das sementes do cacau. Cada fruta contém, em média, 50 caroços, originariamente cobertos por uma polpa branca e viçosa. Algo parecido com o café.
Colocadas em terreiros para secar ao sol, depois industrialmente torradas e moídas, as sementes seguem para as fábricas de chocolate. Daí em diante, sua história se revela ao mundo urbano. Todos os povos o adoram. A Bélgica e os EUA lideram o consumo per capita de chocolate, com 15 kg/ano. No Brasil a média está em 3 kg/habitante/ano. Nada mal.
Ninguém, claro, é obrigado a conhecer a economia rural brasileira, muito menos o ciclo de produção do cacau. Coisa de agrônomo. Aqui apenas se pretende apontar a existência de um crescente fosso entre a sociedade moderna e a agricultura. A urbanização e a consequente industrialização do alimento rompem os elos originais entre a comida e quem dela usufrui. Um processo histórico.
Argumenta-se, exagerando, que as crianças dos grandes centros urbanos mal sabem de onde brota o leite que tomam nas mamadeiras, acreditando elas, talvez, que das prateleiras do supermercado surja, por milagre, o branco líquido que bebem. Afinal, quem já presenciou a ordenha de uma vaca?
Essa distância entre o campo e a cidade, facilmente perceptível no exemplo do chocolate ou do leite, esconde um terrível perigo. Ao desconhecerem as ligações do alimento desde quando sai produzido na roça até chegar à mesa, as pessoas acabam por se esquecer, também, dos homens que vivem longe na labuta rural. E ninguém valoriza aquilo que desconhece.
Nada mais aflige o agricultor nacional que se perceber menosprezado pela sociedade, algumas vezes até tratado de forma preconceituosa na opinião pública, como se dispensável fosse. Além da já citada ilusão alimentar, existem com certeza outras razões explicativas desse triste fenômeno da atualidade brasileira. Bom tema para a academia estudar.
Pelo sim pelo não, certa má fama acomete, desgraçadamente, os agricultores nacionais, retirando-lhes o prestígio de que deveriam gozar graças à importância fundamental de sua atividade, qual seja, de provedores do alimento humano. Para não falar das matérias-primas essenciais cultivadas, como o algodão, presentes nas calças jeans e nas camisetas ostentadas pela juventude. Reconheceriam eles um pé de algodão?
Há tempos as lideranças rurais procuram caminhos para melhorar sua imagem perante a sociedade. Uma hipótese de trabalho é exatamente esta: explicitar melhor a origem das coisas. Campanha de comunicação de massa poderia mostrar que o suor do agricultor abastece a mesa da salada, do arroz com feijão, da mistura boa, da fruta gostosa. Pedagogia fácil.
Nos alimentos processados, todavia, mais difícil se percebe o vínculo da terra com o garfo. Embutidos, como os presuntos, enlatados, como o óleo de cozinha, engarrafados, como a bebida, as embalagens escondem o começo do gosto. Pode-se apelar ao emocional: inexiste cerveja sem cultivo de cevada, nem camisinha sem látex de borracha. Viva os fazendeiros!
As mazelas do campo, carregadas desde o passado escravocrata, infelizmente turvam os olhos da sociedade, impedindo-a de perceber com nitidez os amplos benefícios da roça, valorizando-a adequadamente. Ruralismo, em vez de virtude, vira defeito.
Parte da culpa cabe, por certo, aos próprios agricultores. Lideranças caquéticas, discursos atrasados que irritam os formadores de opinião, causam um verdadeiro antimarketing rural. Existem também, é verdade, produtores caloteiros, outros antiecológicos, cujo comportamento perdulário agride o bom senso. Nada estranho. Em todos os setores da sociedade existem os bocós de seu tempo. Pode procurar.
Os cientistas já comprovaram o poder antidepressivo do chocolate, provocado pelo aminoácido triptofano. No cérebro ele se converte em serotonina, um poderoso neurotransmissor. Mas cuidado com a euforia. Exagerar na doçura pode provocar engordante dependência. Chocólatras que o digam.
Como se vê, nada é perfeito. Nem o chocolate, nem os agricultores.
Xico Graziano